Este blog já foi muito eloquente a respeito das possibilidades de navegar o mundo conectado com uma perspectiva positiva e muito bem-vinda de que, com tantas pessoas se utilizando das mesmas redes, ocupando os mesmos espaços e onde todos teriam vez para falar e ser ouvidos, tudo seria muito bom e memórias duradouras e gratificantes poderiam com certeza se construir. Podem esquecer. Para fazer amizades na internet, as coisas nem sempre vão ser tão fáceis quanto parecem.
O mundo de hoje concentra pessoas repletas de ódio, por uma série de razões. De fato, quando se faz uma campanha de marketing, principalmente, focamos no positivo e deixamos de lado o negativo. Isso me lembra de uma das cenas da primeira temporada da série Mad Men, onde o executivo famoso por sua iniciativa e visão de jogo Don Draper, interpretado por Jon Hamm, joga no lixo um relatório de centenas de páginas sobre os malefícios do tabagismo. Em seguida, assina um contrato com uma empresa do ramo numa reunião onde está mentalmente exausto, improvisa e se perde na fala, mas acaba por satisfazer uma motivação interna de um dos representates da Lucky Strike: a busca pela felicidade.
O tabagismo muda as pessoas, de tal forma que desejos reprimidos se tornam maiores, enquanto a frustração e a dor parecem se tornar menores para quem as cerca, mas se aprofundam cada vez mais em quem consume esse tipo de produto, comprovadamente tóxico. E não é à toa que se fala tanto em relacionamentos tóxicos, hoje em dia: as pessoas não revelam, propositalmente, suas intenções. Por um lado, isso pode ser visto como a causa de um conflito: todo mundo quer honestidade, abertura, um papo cabeça, descontraído, leve. Por outro, pode ser uma consequência: a complexidade das interações, a relação trabalho e família juntamente com amizades e contatos distantes: tudo isso é amarrado pelas redes sociais. Estas, por sua vez, têm suas próprias regras, que mudam o tempo todo; no fim, isso tudo pode gerar confusão e tormento psicológico.
Considerando esse contexto, se pensarmos no mundo conectado e nas interações que, idealmente, poderíamos ter o tempo todo, devemos observar pelo menos 4 fatores:
1) Motivação e emoção
Quando encontramos alguém, não fazemos a menor ideia de como foi o dia daquela pessoa. Ela pode estar abatida, ou muito contente; ela pode estar prestes a ter um ataque de nervos (aquela expressão que usavam antes de se falar em “surto psicótico”, mas depois de já existirem tratamentos que não incluiam a prática dos manicômios, como a aplicação da camisa de força, ou aquele cenário machadiano narrado no conto “O Alienista” (Domínio Público).
É comum se deparar com situações inusitadas ou inesperadas; é cada vez mais aceita a naturalização de toda a aberração possível, por motivos que podem ou não ser explicados (depende da paciência de quem lê). Quando se abriu uma porta para a “liberdade de expressão” na internet, se abriu uma porta para tudo, e existem tantas discussões sobre isso nos anos recentes que nem vale a pena citar — é só fazer a sua pesquisa, mas levando em consideração a história da mídia e também o poder que emana dela, financiada muitas vezes por grupos de interesse; mais recentemente, a dinâmica que se verifica é moldada pela influência do poder dos aparatos tecnológicos, e não editoriais.
Fora desse “vale-tudo” que se naturalizou no contato com a rede, há artigos sérios dos mais variados e de leitura mais do que acessível, tanto da perpectiva jurídica quanto em veículos de grande circulação como o G1 (que resume o tema) ou a BBC (que se alonga e apresenta uma série de exemplos históricos). Temos a impressão, devido aos baixos índices de leitura mundo afora, que não há muito interesse em discussões aprofundadas; mas não é o caso nem de condenar ninguém por se comunicar de outra maneira que não a tradicional nem de achar que isso se aplica a todos e todas.
Importa é saber que, quando encontramos alguém, mesmo que seja clicando num perfil, estamos fazendo julgamentos rápidos demais e repetindo o processo diversas vezes, e assim formulando um repertório de crítica vazia, desconhecendo a realidade do outro e mesmo assim associando a pessoas com quem nunca conversamos toda uma série de atributos. O oposto pode acontecer, mas se interagimos, não é garantido que a resposta vai ser o que desejamos. Achar que todas as pessoas com quem iniciamos uma conversa vão nos dar atenção é um delírio, além de uma falta de consideração gigantesca — não sabemos como foi o dia daquela pessoa, ou os anos passados e que tipos de experiência tiveram mais ou menos impacto na vida delas.
2) Hábito e costume
Entre culturas diferentes, que podem ganhar evidência tanto no contato de um país com outro quanto de uma região com outra do mesmo país (e ainda, entre bairros), talvez não seja comum ouvir certo tipo de música, falar sobre assuntos como sexo ou drogas, fazer piadas ou mesmo aquelas coisas bem básicas, como perguntar o nome e de onde você fala. Mas por trás disso, existe todo um sistema preparado para identificar quem são as pessoas que interagem, tudo o que fizeram na internet nos últimos 6 meses (na verdade, o próprio anonimato é vedado segundo a lei, e há postagens com as quais este blog discorda veementemente, como esta, que coloca o crime e o sexo virtual no mesmo patamar de relevância e fala que “está tudo ligado”).
Aos que clicarem no link e lerem o resumo ou assistirem ao vídeo, ficam reflexões a seguir. Sim, é evidente que existe intimidade na internet. Negar isso é solapar histórias de vida inteiras, incluindo a do autor deste blog, nesse caso específico, com o apoio de uma universidade britânicas e ainda chamando esse ato de investigação do “capitalismo de vigilância”. Caso se precise explicitar, a vigilância funciona para controlar, e com medo dos aparatos de controle e da possibilidade de haver um flagrante descumprimento de norma, mesmo a mais esdrúxula, quem detém as ferramentas de vigilância detém o controle, e instila o medo.
Parece que a jornalista Beth Veloso não se preocupou em deixar isso claro, mas pode ter sido um recorte pouco representativo de sua área de atuação. Quem sabe ela nunca foi leitora de Foucault. Como não se debate muito no Brasil, ficamos sem pano de fundo; mas não se fala em nenhum momento que, apesar do fato de que “tudo pode vazar”, existem ferramentas de proteção e existe ativismo (em território nacional, lembre-se ao menos das iniciativas da Coalizão Direitos na Rede, além de toda uma rede de apoio e empoderamento não da mulher de visão tradicional, e sim de quem gosta de ter um contato através do ambiente virtual e assim se sente bem, por um número de razões tão evidentemente enxuto que não convém descrever ou listar, mas cabe dizer que organizações como a Anistia Internacional, o Observatório de Direitos Humanos e mesmo a Organização Mundial da Saúde dão suporte ao tratamento digno de quem ganha dinheiro com sexo ou conteúdo adulto.
Parece faltar, também, uma investigação sobre como os mecanismos de proteção são quebrados, e como são feitas transações baseadas ou na chantagem (em contatos diretos) ou numa série de crimes que vão do furto de dados (é isso que “vaza”, pois no fim, querem números de cartão de crédito, não uma foto sexualmente explícita) ao roubo de identidade. Em 2015, porém, o tom era outro, como se nota em veículos voltados aos lucros das big tech, ou mesmo na grande preocupação de instituições financeiras com o segredo das finanças de executivos que levou a Mastercard a se preocupar tanto com o “consentimento” do elenco envolvido na produção de cenas de pornografia.
Sabemos de uma coisa: essa indústria é grande nos Estados Unidos; mas eles não estão sozinhos coisa nenhuma. E mesmo que fosse o caso, teríamos que criticar causa e efeito, ao invés de banir toda uma discussão relevante para a sociedade. O costume, ao lidar com o diferente, é exacerbar preconceitos, e isso é feito sistematicamente, cada vez mais frequentemente — e depois se perguntam por que a educação falha, enquanto o Estado proíbe temas como sexualidade de serem abordados (aqui e lá fora, como já foi citado neste blog) e os verdadeiros marginais, se tratando de criminosos, estão por aí, mas há muitas figuras que atuam na base do que se costuma chamar de “trollagem”, que aqui posso tentar definir como ataque malicioso à reputação e dignidade de usuários ou usuárias cuja identidade raramente se conhece, mas pode ser tanto orquestrado quanto massificado; jocoso ou agressivo.
Talvez isso tenha motivado a jornalista que citei. Esse tipo de comportamento é típico do brasileiro bem-humorado, que ri de tudo e não leva nada a sério; mas aqui também se constrói pensamento crítico sobre ideologia, ativismo, políticas públicas e postura desde os anos escolares até a entrada no mundo do trabalho. Se concordo com um ponto da entrevista, é que de fato as mulheres sofrem ataques constantes, mas sem medo de parecer mais um reprodutor do machismo de tipo enraizado e que deixa lastros por onde passa, são as mulheres que escolhem com quem se relacionar, numa dinâmica inegável de oferta e procura, se é que pega bem usar esses termos.
3) Aparência e percepção
As empesas fabricantes de celulares colocam cada vez mais câmeras nos aparelhos, mas quem disse que as videochamadas os registros de diversas faixas etárias são corpos ou rostos? Todos se escondem, e quando não isso, filmam os outros. Aqui, pode-se discutir o que aconteceu com George Floyd, mas não é esse o ponto (apesar de haver uma pessoa assistindo passivamente à toda a ação policial, sem fazer nada além de filmar com o celular ou pensar em intervir, chamar ajuda ou algo do tipo). Longe dos casos mais críticos e de volta às conversas mais ou menos naturais, o que se nota é que, nessas interações (os dados são “sensíveis” e por isso não-compartilhados, mas nem por isso deixam de ser visualizados), o tempo de resposta para avaliar de vale a pena falar com alguém é menor que meio segundo.
Se você tenta fazer um videochamada, por exemplo, mas não sabe lidar bem com a câmera, usando ângulos que favoreçam seus traços se usando de todos os clichês de beleza reforçados pela mídia e, digamos, de seu repertório, não haverá chace de manter uma conversa — a não ser que surja alguém interessado ou interessada no que você tem a dizer, e que de repente comente: “parece que o seu dia não foi muito bom, por que essa cara?” Isso é cada vez mais raro. O comum é ter pessoas que te comparam com animais, dão risada, soltam uma exclamação qualquer, e nesse sentido, aqueles rapazes de pele parda que soltam um “hey bro” com sotaque carregadíssimo pelo menos estão tentando conversar (a princípio — e aqui me lembro de um episódio do famoso desenho South Park).
Não é sobre sites de encontros: os aplicativos também proporcionam videochamadas, e as imagens, como reportado neste blog, chegam a ser refeitas mais de 20 vezes antes de se escolher uma favorita, isso porque ainda vão para todo um estágio de edição da foto em si, além da distribuição.
Podemos pensar na indústria. O TikTok percebeu muito rapidamente que precisava frear o culto à imagem lidando com faixas etárias tão recém chegadas ao mundo conectado, e são muitas contas com mensagens positivas, mas a maioria delas tenta jogar com o humor e com a linguagem dos jovens, com letras de música e texto demais para ler numa imagem, o que parece mostrar o inverso do que todos esperavam: quando se trata de relacionamentos, jovens têm sentimentos complexos que nem sempre são capazes de expressar, e as mídias sociais tratam desse problema — mas isso pode ter uma influência muito menos interessante do que uma conversa franca, que não precisa ser com os pais em nenhum momento, uma vez que essa batalha já está quase que perdida.
O que precisamos evitar é que se inundem as mensagens diretas de meninas que postaram uma simples foto do rosto e de repente precisam filtrar 50 muçulmanos, 20 russos e mais uns 80 americanos rápidos no gatilho, na versão emoji de foguinho. Aí, realmente, precisamos conversar sobre o próximo item.
4) Habilidades comunicativas
Alguém aqui disse que você ia se comunicar? Não enganei ninguém, vocês que se enganaram. Eu sempre disse que o ponto era ter conversas melhores. Se eu estou aqui, depois de toda a minha formação, experiências de trabalho e na vida, ainda tentando ter o mínimo de respeito ou de interesse das pessoas de fora com quem penso poder estabelecer uma conexão legal, mas só levo tapas na cara ou sou chamado de algum apelido que mal entendo e fica por isso mesmo, enquanto pegam todas as minhas informações em segundos, o que te faz pensar que você, que mal aprendeu o verbo to be, vai chegar numa pessoa com mestrado em Harvard e discutir a teoria econômica que vai moldar o mundo se vier uma recessão em 2023, pós-pandemia e durante inflação mais uma guerra?
O que eu disse é que era interessante participar. Dizer oi para uma pessoa aleatória, falar que gostou do cabelo, do sotaque, que achou bonitinho, que a música tocando é legal, e aí quem sabe falar que você sempre quis viajar para um país, ou então que o cachorro na câmera é uma coisa fofa — assuntos do tipo. Isso, nas redes sociais, é bem saudável (apesar de críticas duras e absolutamente desproporcionais sobre o fenômeno das contas “secretas”, ou “throwaway accounts“) O estudo citado, nem tão recente, é de um ex-funcionário do conglomerado Meta, e basicamente fala que nem sempre se procura amizades e sim contatos na internet.
Mas se você tiver sorte, caprichar nos ângulos da câmera e na iluminação (afinal, estamos quase em 2023), falar com confiança, jogar um charme e saber tratar com respeito, quem sabe se forma um vínculo? E se a pessoa também não falar inglês como primeira língua? E se ela se interessar exatamente pelas mesmas coisas que você? Vai fundo!
Nem tudo está perdido
Existem muitos casais, inclusive de bem mais idade que o autor desse texto, que se utilizam das redes para encontrar um par, seja ele romântico ou uma distração, indo às vezes para o flerte ou algo de fato mais picante. Nunca julgamos. Se fizermos isso, perdemos a razão: é por isso que muitos jovens lutam, e é por isso que citei a entrevista (mas deixei de situar o momento que nosso país vive, de valores absolutamente retrógrados colocados como bases estruturais da coletividade e da harmonia civil em território nacional). Ninguém precisa ficar nu, mas ter conta em banco é legal.
Como uma última observação, depois desse trocadilho terrível (que foi, para os azar dos críticos, intencional), vale a pena dizer que não importa o tipo de relacionamento que você procura no momento. Existem muitos momentos na nossa vida, que é longa, apesar do que andam dizendo; e em momentos diferentes, você vai precisar de estímulos diferentes.
Uma hora, pode ser o seu trabalho, que lhe impulsiona; outra, pode ser uma troca de mensagens com uma pessoa super legal que você acabou de conhecer, e te tratou muito bem; de repente, alguém quer sair com você; outra hora, uma amizade antiga te chama pra bater um papo; talvez uma visita familiar esclareça as dúvidas que você tenha na cabeça; o ambiente, quando você anda sozinho ou sozinha pela rua, pode te fazer perceber o mundo de outra forma; um dia chuvoso, mesmo te impedindo de sair e fazendo você focar no celular, pode ser que te faça ler um livro ao invés disso, ou que simplesmente aproveite para relaxar e não pensar em nada, de janela aberta, respirando aquele aroma tão peculiar. Só não espere conseguir cidadania em outro país, casar e ser feliz longe de tudo que fez de você quem você é. Isso aí, acho, é coisa de doido.
Image: Robert Scoble (2008)